segunda-feira, 1 de março de 2010

'tu gosta de esfiha?'

ela é gaúcha e fala assim mesmo, 'tu gosta'. e eu respondo, no telefone, que sim. ela chega à minha casa com uma bandeja de esfihas quentinhas e macias. e vai dizendo 'tô toda suja, porque comi uma esfiha enquanto vinha dirigindo'. ela tá grávida, naquele doce início de gravidez, em que quando a mulher não está enjoada e/ou com sono, tá com fome.
era um domingo chuvoso e frio para os nossos parâmetros paulistanos - sim, meus parâmetros são os paulistanos, porque já sou uma gaúcha falsificada. entre um chimarrão e outro, matamos todas as esfihas.
da minha casa ela partiu para o almoço na casa da sogra, a dona margarida, uma senhorinha portuguesa que estava preparando a comida na casa dela. ou seja, as nossas esfihas haviam sido somente um aperitivo para ela. eu, que não estou grávida, fui ter fome só no final da tarde. mas a paula, a grávida, acho que saiu da minha casa já esfomeada.
e eu fiquei pensando em como é bom o alimento das amizades. a frase soa horrivelmente piegas, mas dois dias antes, eu saí da minha casa com uma tristeza tão grande que até as minhas pernas doíam. tinha tomado um banho de banheira quente e perfumado, e tinha colocado tanta água que mal podia me mexer, caso não quisesse transformar o meu banheiro num lago. tinha combinado de encontrar minha amiga, estava com preguiça e liguei pra dizer que, atrasada, eu estava indo. e como a tristeza era grande, estava com preguiça de comer. e perguntei a ela se podia comer na casa dela. ela havia preparado um patê de ricota com kani kama, que eu devorei feito uma porca esfomeada minutos depois de ter passado pela porta de entrada do apartamento dela. como é bom poder chegar na casa de um amigo e comer, comer muito e comer bem.
na minha casa sempre tem comida. até porque em casa onde moram crianças não dá pra ter só uma maçã abandonada na fruteira. é preciso fartura. e desde que a minha casa passou a ser habitada por crianças, há sempre comida. não que antes não houvesse. mas agora há sopas quentinhas, bolos fofos, pães integrais frescos ou congelados - para emergências -, suflês deliciosos.
e meus amigos sabem disso. vêm à minha casa comer. às vezes chegam depois que o almoço já terminou, ou no meio da tarde, sem avisar, e ficam para jantar. e sempre comemos à grande.
lembro do dia em que uma amiga viria jantar aqui. mas ela estava saindo da redação e perguntou se podia trazer uma amiga. poucos minutos depois, uma terceira amiga - dela, não minha - ligou, e também foi convidada. havia uma panelinha de sopa, que nós dividimos em quatro cumbucas. mas tinha também o pão integral feito em casa, e uma manteiga maravilhosa. comemos tudo. e ainda estávamos com fome. uma lata de leite condensando encontrada no armário virou um brigadeiro, e todo o vinho que eu tinha em casa foi consumido. por 'todo o vinho' entenda umas garrafas, não uma adega.
uns anos atrás, quando meu sogro - e toda a família - achava que o câncer tinha ido embora do corpo dele, convidou os filhos e agregados para passar uns dias numa praia em pernambuco. e meu cunhado, fotógrafo, foi fotografar mulheres da região, para as fotos de um projeto dele. fomos de barco pelo meio do mangue, e descemos numa ilhota. encontramos a dona corina, a matriarca de uma família miserável. nos sentamos à sombra de uma mangueira, e a velha senhora pediu a uma neta que trouxesse mangas. a garota trouxe uma bacia velha cheia da fruta. e a velha se pôs a descascá-las, e eu provei a melhor manga do mundo. quando o marcelo terminou de fazer as fotos e fomos nos despedir, a dona corina nos deu algumas sacolas de manga. o quarto do fino resort onde eu estava hospedada ficou maravilhosamente perfumado. e eu carreguei as frutas até são paulo, onde meu pequeno apartamento também ficou perfumado. e nunca esqueci do presente dela, a dona corina: com o pouco que ela tinha, ela havia nos presenteado. e que presente!
eu acho tão engraçado como algumas pessoas lidam com essa coisa de convidados e comida. tem gente que precisa planejar 15 dias antes. e se alguém chegar nesta casa de surpresa, o dono não fica alegre, mas tenso. eu fui criada numa casa que era assim: lá, as refeições têm de ser planejadas, e se foram planejadas para três pessoas, não pode haver seis bocas. porque aí 'pode faltar'.
e eu aprendi que podia ser diferente quando ia às consultas na minha médica clínica geral, que atendia num consultório junto da casa onde ela morava. toda vez que chegava para uma consulta, era convidada para comer. se a consulta era às 8am, eu me sentava junto à mesa da família e tomava café da manhã. se fosse perto do almoço, ficava para almoçar. se fosse à tarde, comia um pedaço de pão saído do forno à lenha e tomava um chá. e nessa casa, a mesa era grande nos dois sentidos: cabiam muitas pessoas e sempre HAVIA muitas pessoas sentadas para comer. sempre tinha comida para todos.
na minha casa não tem o forno à lenha, nem a incrível piscina que ficava dentro da sala de jantar, encostada no jardim, este separado apenas por imensas portas de vidro de correr. mas sempre tem comida, ao redor da mesa nem tão grande assim.
que graça teriam as amizades se elas não nos alimentassem???