sábado, 23 de maio de 2009

a tia querida

nos últimos tempos, eu sonhava muito com ela. era quase sempre a mesma cena: algumas pessoas da minha família e eu reunidos na casa dela, comendo. comendo comidas muito boas.
então eu ligava pra ela e contava que tinha sonhado com ela e que ela sempre estava linda nos meus sonhos. ela dava risada. e dizia que eu tinha de ir visitá-la, pra ela fazer comida pra mim.
não deu tempo. eu vou viajar pro sul daqui a um mês, mas os anjos a levaram pro céu ontem à noite. eu achava que não ia dar tempo pro nosso último encontro quando ela foi pro hospital e começou a ter dificuldade pra respirar. e rezei todos os dias pra que o sofrimento dela fosse pequeno.
...
a tia ienete sempre morou no interior do rio grande do sul. como eu sempre morei em porto alegre, as viagens para visitar a família do meu pai eram um evento. primeiro, porque meu pai ameaçava nos deixar no meio estrada umas 36 vezes durante as longas seis ou sete horas em que ele e minha mãe dirigiam. eu e meus irmãos íamos brigando no banco de trás.
segundo, porque pouco antes de chegarmos a ijuí nós parávamos numa lanchonete em soledade para comer cueca virada. quando não tinha cueca virada, ou quando tinha mas não eram fresquinhas e quentinhas, minha mãe reclamava tanto que perdia a graça. mas quando tinha, comíamos vorazmente, com um refrigerante para cada um.
terceiro, porque a tia ienete morava numa casa que tinha uma rampa no jardim, e uma porta enorme, que dava para o supermercado. o tio willy, marido dela, tinha um supermercado, e nós achávamos isso uma das coisas mais sensacionais do mundo. íamos com nossos primos comer sorvete na lanchonete! ou íamos simplesmente fazer compras. e eu ficava boquiaberta: a tia ienete enchia um carrinho e não pagava! saíamos pelos fundos, e entrávamos na casa dela pela tal porta que dava na rampa, que já era no jardim da casa dela.
...
quando eu era criança, a tia ienete fazia questão de nos hospedar, nós cinco. meu pai, minha mãe, eu e meus irmãos. e hospedava também os outros tios e tias com suas proles! e a gente passava o dia inteiro brincando.
com os meus primos preparávamos um nescau que hoje eu acho muito nojento, mas que na minha infância era uma bebida de outro mundo: colocávamos uma colher de sopa de nescau, uma colher de sopa de toddy de morango, uma colher de sopa de açúcar e leite. eu, que não tomava leite, tomava esse meleca feliz da vida.
...
na páscoa, minha irmã, que é afilhada da tia ienete, ganhava uma cesta de chocolates surreal. não vinham só ovos de chocolate. vinham bombons, chokitos e outras maravilhas. eu e meu irmão (teria de perguntar a ele, para confirmar, mas acho que sim) morríamos de inveja. mas ela era afilhada de uma 'dona de supermercado', então não tinha muito como discutir justiça nesse caso.
...
ano passado, fui com meus filhos e meus pais visitá-la. ela usava um gorrinho preto de lã na cabeça em casa, pra não precisar usar peruca. e meus filhos, claro, ganharam muitos chocolates dela e do tio willy. porque a casa deles sempre foi uma fábula gastronômica. mas ela já não estava tão forte como sempre tinha sido. ela teve quatro filhos, e andava sempre com as unhas pintadas de vermelho - quando eu era criança, que é do que me lembro. andava pela enorme casa dela com passos firmes. com passos de mulher forte.
...
e ela sempre perguntava como iam os 'gatos'. não sei se ela usava essa palavra, mas acho que sim. e no ano passado eu disse pra ela que não havia NENHUM gato na parada. ela me olhou incrédula. e então eu expliquei, 'tia, se não for um cara muito legal, melhor ficar sem gato e feliz'. ela concordou muitíssimo comigo. mas torcia taaaanto pra que eu me casasse que agora, lembrando da nossa conversa, fico rindo sozinha.
...
lembro de vê-la sempre reclamando das empregadas que trabalhavam na casa dela. como ela era uma super dona de casa, nenhuma empregada deve ter chegado aos pés dela. a casa dela era extremamente limpa e organizada. tudo tinha cheiro bom, cheiro de 'limpinho'.
...
quando meu filho tinha dois anos, viajei pra ijuí pras minhas tias conhecerem o joão e vice-versa. pedi pra ficar na casa dela, e ela me hospedou docilmente. mas o joão tinha acabado de tirar as fraldas, e fazia muito, muito frio. e então ele fez xixi na cama que eu tinha feito no chão pra ele, com muitos edredons e cobertores macios. no outro dia, eu e ela levamos tudo pra lavanderia e colocamos tudo na máquina.
o joão tava tão feliz de brincar com os brinquedos do joão pedro, meu primo que tem um ou dois anos mais que meu filho, que ele ficava enfiado num quarto onde a estela, mãe do joão pedro, guardava uma quantidade absurda de carrinhos, e não pedia pra fazer xixi. só vinha correndo falar comigo quando já estava todo mijado. e lá ia eu pro tanque lavar cueca, calça e meias. quando as roupas limpas dele acabaram - acho que lá pelo sexto xixi nas calças consecutivo, tive de secar tudo na secadora.
...
um dia a tia ienete e o tio willy resolveram que a casa era grande demais pra eles. meus quatro primos já tinham casado, e eles finalmente se mudaram para o apartamento que eles tinham comprado havia anos mas que permanecia fechado. ano passado, quando fomos visitá-los, eles moravam no apartamento. e minha tia parecia muito feliz por não ter mais tanto trabalho com a casa tão grande, tão cheia de quartos, salas, banheiros, cozinhas, móveis, enfeites.
...
ah, ia me esquecendo de falar sobre o nome da tia ienete. ela contava, e os irmãos dela também, que quando foram registrá-la, o cara do cartório escreveu janete, que era o nome escolhido pelos meus avós. mas o jota ficou parecendo um 'i' e o 'a' virou um 'e', com um acento circunflexo, que seria a parte de cima do jota mas foi parar sobre o 'e'. mas por que o 'a' de janete virou 'e' de ienete eu não sei. e assim a tia ienete - ou iênete - teve um nome único. mas todo mundo sempre a chamou de mana. tia mana.

domingo, 17 de maio de 2009

eu sei falar um palavrão em gaúcho

era um almoço especial. num dia da semana qualquer, tínhamos um convidado ilustre: o wesley, um dos filhos da nalva, que trabalha na minha casa.
meu filho olha pro wesley bem concentrado e diz: 'eu sei falar um palavrão em gaúcho'.
tive de forçar a boca para não cair na gargalhada. fiquei esperando para ouvir o que viria na sequência. então o joão diz: 'puna granputa. é um palavrão em gaúcho, e quer dizer filho da mãe'.
encerrada a explicação pro wesley, o joão olha pra mim solenemente e diz 'é um palavrão em gaúcho. meu avô que me ensinou, mãe'.
bom, o que ele acha que eu pensaria? é óbvio, desde o início, que era coisa do avô. mas ele continuou o almoço com uma cara solene, séria, porque afinal ele estava nos ensinando - a mim e ao wesley - uma valiosa lição.
liguei pro meu pai depois disso, pra contar a história hilária e para saber como se dizia a palavra tão fina. 'cuna granputa', me explica o velho, com a mesma voz solene do neto.