sábado, 17 de janeiro de 2009

meu deus, mas o que esse homem vai fazer comigo?

marquei cedo. porque ontem começaram as minhas férias parciais - as crianças foram pra praia com o pai delas, e eu estou sozinha em são paulo. cheguei cinco minutos atrasada.
como sempre, o dr. kong estende seu braço gentilmente. ele tem ares joviais mas contidos, como todo chinês, imagino. entro na salinha sozinha, e a mulher dele, que me cumprimenta com um beijinho contido, entra e diz pra eu tirar a blusa e a calça. sai e logo volta, e pergunta onde dói. meio envergonhada, respondo: no pé, no cócix (será que é assim que se escreve essa palavra estranha?), nos ombros e na barriga.
me deito na estreita maca, e a mulher do dr. kong, cujo nome ignoro, começa a me sovar nos ombros. pouco depois entra ele, e ela a ele explica onde dói. de novo com vergonha, digo 'estou podre'.
ele é um homem de poucas palavras. e quando fala, entendo pouco. ou seja, nossos diálogos e o silêncio são quase a mesma coisa.
o homem com mãos fortes começa a sova pelos pés. segue até chegar aos meus ombros. fico pensando meu deus o que esse homem vai fazer comigo, já que sinto dores da cabeça aos pés, ou o contrário, o que dá no mesmo.
depois de muito apertar e de muita dor, seis agulhas são espetadas na região lombar - penso que nunca tive agulhas espetadas na bunda! - e nove, nos ombros e nas costas. ele sai da sala, e eu não só durmo, como sonho com lichias. pelo menos era um sonho doce, e bom.
acordo com o barulho da porta, levo um susto, e esse chinês com mãos milagrosas me olha e dá uma risada. ufa!, não devo ser a única a deitar nas macas dele - são três saletas em que ele sova pessoas que como eu sabem que a cura pode ser imediata - e dormir, sonhar e acordar assustada.
e então a sova continua. da cabeça aos pés. e, para fechar com chave de ouro, me viro de barriga pra cima e ele faz crec com meu pescoço, pra um lado e depois pra outro, depois com os braços e, por último, com as pernas, uma de cada vez, uma coisa mais aflitiva do que relaxante e que fez eu me sentir uma contorcionista de um renomado circo chinês.
pronto, diz ele, e some.
uau, levanto, volto à vida, escabelada e feliz. me visto devagar, desço as escadas, pago a sra. kong, que me mostra um papelzinho onde está escrito o valor da consulta.
mais um beijinho contido dela, entro no carro e respiro aliviada. como podem existir anjos tão poderosos na terra?
ps - comecei a comemorar a chegada dos meus 38 anos com vinho argentino rosé, que é incrível - não a comemoração, nem os 38, mas o vinho.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

'tédio? não sei o que é isso'

ela era uma mulher de frases feitas. sempre repetia as mesmas, e sempre com a mesma convicção. era uma mulher de princípios.
minha vó sempre se surpreendia com as coisas mais banais. com o tédio alheio, por exemplo. ela era incapaz de compreender o tédio. parecia sempre se divertir com as coisas da vida. e a vida dela, me parece, foi a de uma princesa. uma bonequinha mimada, que não tinha problemas, nem tédio.
ela era podre de rica. acho que não por causa da família dela. cuja mãe era agiota (ou seria o pai?), e o pai um naturista, natureba, vegetatriano, que cultivava orquídeas e não via no trabalho algo importante na vida.
mas quando ela - a oma - se casou com meu avô, a vida ficou cor de rosa. ela contava que no primeiro natal da vida de casada o marido - meu avô, no caso - perguntou o que ela queria de presente. ela então fez uma lista, com mais de dez pedidos, e, surpresa!, na noite de natal todos os pedidos viraram pacotes de presente!
contava que ao se casar, com 24 anos, só sabia fazer pudim de leite. aprendeu a cozinhar com as empregadas. e com elas bordava na cozinha, à tarde, depois do almoço. enquanto meu avô descansava.
quando eu nasci, ela devia ter entre 50 e 60 anos. eles já moravam no que hoje eu chamo de mansão. mas, quando eu era pequena, era simplesmente a casa do opa e da oma. o hall da casa era do tamanho da metade do meu apartamento. acho que o hall, o escritório e o lavabo juntos eram DO tamanho do meu apartamento.
ela adorava contar que quando eles se mudaram pra casa, tudo estava pronto. a casa foi construída pelo meu avô - quero dizer, ele não a construiu, mas mandou alguém construir. e quando eles entraram lá, tudo estava feito: armários, cortinas, móveis.
durante muitos anos, os velhos passavam seis meses na europa e seis meses no brasil. nas longas estadas européias, um motorista os acompanhava. meu avô teve paralisia infantil, andava devagar, porque uma perna era mais curta que a outra. por isso, e por ser surdo, ele não dirigia. e como o velho era um gentleman com a mulher dele, ele providenciava um motora. e toda vez que viajavam, eles iam pros mesmos lugares, ficavam nos mesmos hotéis, assisitiam às mesmas óperas, e tinham O MESMO motorista!
o motora era tão bem tratado que na única vez em que fui à europa com a minha avó (mais pai e mãe e irmãos) e fomos pra gstaad - uma cidadezinha adorável nos alpes suíços - , ficamos no hotel onde o cara se hospedava! o hotel onde meus avós ficavam estava no alto de uma montanha, e o hotel onde nós nos hospedamos - o mesmo do motorista - ficava no pé da montanha. um hotel incrível, com travesseiros com fronhas muito brancas de algodão e com os cobertores de pluma mais macios que eu já toquei.
mas voltando à bananalândia, na casa deles tudo estava sempre no mesmo lugar. as refeições eram servidas à mesma hora, e a variedade de comida era pequena. meu avô, como bom alemão, comia todo dia batatas cozidas no almoço e pepinos em conserva com pão preto no jantar. tudo era de uma monotonia muito doce. no almoço tinha limonada, no jantar, chá de mate com erva cidreira. aos domingos, bebíamos refrigerantes antarctica, guaraná, soda limonada ou água tônica. um caminhão fazia a entrega, e as garrafas era organizadas da adega, no porão da casa. no mesmo 'andar' da lavanderia, da garagem e de um quartinho onde ficava uma boneca de cabelos longos e loiros que nos metia medo.
os natais eram exatamente iguais. a comida, com peru e arroz à grega e salada de massa e purê de maçã e presunto, o pinheirinho que devia ter uns dois metros de altura, os chocolates pendurados na árvore, a porta de correr com vidro jateado que era aberta só depois do jantar, quando então os cinco netos corriam loucos em direção à arvore para procurar seus presentes.
fico me lembrando da minha vó e pensando em como alguém pode viver assim. na mesma casa, com o mesmo marido, as mesmas viagens. sem nunca ter pintado uma parede da casa de uma cor que não fosse o branco ou o bege. de ter vivido ao lado de um marido alemão 16 anos mais velho que ela e que exigia tudo. e nunca ter sentido tédio!
pois eu sinto tédio. e infelizmente não é por falta de movimento. mudei tantas vezes de emprego que estou completando minha segunda carteira de trabalho. vivi em quase vinte casas diferentes. morei em cinco cidades. já tive cabelos longos, médios, curtos e curtíssimos. já fui loira platinada, já tive mechas loiras falsas, fui ruiva e pintei o cabelo de castanho escuro. já pesei 15 kg a menos do que peso hoje e 20kg a mais. já pensei em mudar de profissão mil vezes, mas nunca consegui e agora desisti. já andei em todas as montanhas-russas que vi na frente, e hoje não entro numa nem que me paguem muito bem, e em euros.
e mesmo assim, a oma continua sendo minha fonte de inspiração. ela, que quando eu nasci tinha uma cara, e que quando a vi pela última vez, velhinha, com quase 90 anos, tinha a mesma cara, a mesma cor de cabelo, o mesmo penteado e as mesmas unhas pintadas de cor de rosa clarinho. que toda vez que eu acendia um cigarro, dizia 'que horror'. e que me deu de presente meu primeiro lençol de casal quando saí da casa dos meus pais.
talvez ela não soubesse, e agora eu não tenho como dizer isso, porque ela mora no céu, e eu na terra, mas é pra frente que se anda.
deus esteja.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

todo dia ela faz tudo sempre igual

a rotina é uma parte importante da vida. só fazendo as coisas com um mínino de ritmo (ou será repetição?), é que os olhos conseguem olhar pra dentro, e não só pra fora.
ela é uma pessoa quase monótona. vai trabalhar, volta pra casa, fuma um cigarro, pensa na vida.
as roupas são compradas numa só loja, porque dá menos trabalho e menos chances de arrependimento. com o cabeleireiro ela tem uma relação mais fiel do que a maioria dos casamentos. acho que até quando sai do banho ela deve se secar do mesmo jeito.
os cremes usados são os mesmos todos os dias. o jeito de dizer bom dia parece também ser igual - mas não deve ser, porque aí seria demais.
receita de bolo, quando faz sucesso, é repetida. e receita de comida idem ibidem. as férias foram as mesmas durante uns anos, quatro talvez, numa conjunção de falta de dinheiro, filhos muito pequenos e solteirice.
perfume acaba sendo o mesmo quando surge um que agrada. mas os amigos não são sempre os mesmos. os chatos são descartados, mas os bons permanecem na lista de amigos por longos anos.
as idéias também não são sempre as mesmas, mas às vezes elas - as idéias - demoram pra ser trocadas. mas quando são, viram o ponto de partida e ponto.
ela gosta - acho que desde que nasceu - de dormir cedo e acordar cedo também. quando bate o olho em qualquer coisa, já tem opinião formada. principalmente quando a coisa for ruim. gente sem graça, roupa feia, trabalho chato, comida ruim, .
mas ela acha que só repetindo as coisas é que sobra espaço pra poder olhar pra dentro. e mudar do lado de dentro. e essas mudanças são bem mais demoradas do que as quatro horas sentada no cabeleireiro pra mudar a cor do cabelo ou o financiamento de cinco anos do carro novo.
agora ela diz que sente tonturas, sem contar a barriga, que tá estranha doída embolada. as sensações que vêm de dentro também costumam ser mais difíceis de ser percebidas do que as que vêm de fora. se o esmalte descasca, é só ligar pra manicure. mas se quando fechamos os olhos temos a sensação de que o chão some, ah, isso demora mais pra ser sentido e, pior, digerido.
e como tudo dói, diz ela. viver um dia atrás do outro, sentir um dia atrás do outro, respirar o tempo todo. mas assim, repetindo as coisas, tudo vai mudando. a coragem vai aumentando, a força das pernas também, a cor dos olhos fica mais nítida, e as noites de sono são muito, muito bem dormidas. as dela, é claro.