quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

'tédio? não sei o que é isso'

ela era uma mulher de frases feitas. sempre repetia as mesmas, e sempre com a mesma convicção. era uma mulher de princípios.
minha vó sempre se surpreendia com as coisas mais banais. com o tédio alheio, por exemplo. ela era incapaz de compreender o tédio. parecia sempre se divertir com as coisas da vida. e a vida dela, me parece, foi a de uma princesa. uma bonequinha mimada, que não tinha problemas, nem tédio.
ela era podre de rica. acho que não por causa da família dela. cuja mãe era agiota (ou seria o pai?), e o pai um naturista, natureba, vegetatriano, que cultivava orquídeas e não via no trabalho algo importante na vida.
mas quando ela - a oma - se casou com meu avô, a vida ficou cor de rosa. ela contava que no primeiro natal da vida de casada o marido - meu avô, no caso - perguntou o que ela queria de presente. ela então fez uma lista, com mais de dez pedidos, e, surpresa!, na noite de natal todos os pedidos viraram pacotes de presente!
contava que ao se casar, com 24 anos, só sabia fazer pudim de leite. aprendeu a cozinhar com as empregadas. e com elas bordava na cozinha, à tarde, depois do almoço. enquanto meu avô descansava.
quando eu nasci, ela devia ter entre 50 e 60 anos. eles já moravam no que hoje eu chamo de mansão. mas, quando eu era pequena, era simplesmente a casa do opa e da oma. o hall da casa era do tamanho da metade do meu apartamento. acho que o hall, o escritório e o lavabo juntos eram DO tamanho do meu apartamento.
ela adorava contar que quando eles se mudaram pra casa, tudo estava pronto. a casa foi construída pelo meu avô - quero dizer, ele não a construiu, mas mandou alguém construir. e quando eles entraram lá, tudo estava feito: armários, cortinas, móveis.
durante muitos anos, os velhos passavam seis meses na europa e seis meses no brasil. nas longas estadas européias, um motorista os acompanhava. meu avô teve paralisia infantil, andava devagar, porque uma perna era mais curta que a outra. por isso, e por ser surdo, ele não dirigia. e como o velho era um gentleman com a mulher dele, ele providenciava um motora. e toda vez que viajavam, eles iam pros mesmos lugares, ficavam nos mesmos hotéis, assisitiam às mesmas óperas, e tinham O MESMO motorista!
o motora era tão bem tratado que na única vez em que fui à europa com a minha avó (mais pai e mãe e irmãos) e fomos pra gstaad - uma cidadezinha adorável nos alpes suíços - , ficamos no hotel onde o cara se hospedava! o hotel onde meus avós ficavam estava no alto de uma montanha, e o hotel onde nós nos hospedamos - o mesmo do motorista - ficava no pé da montanha. um hotel incrível, com travesseiros com fronhas muito brancas de algodão e com os cobertores de pluma mais macios que eu já toquei.
mas voltando à bananalândia, na casa deles tudo estava sempre no mesmo lugar. as refeições eram servidas à mesma hora, e a variedade de comida era pequena. meu avô, como bom alemão, comia todo dia batatas cozidas no almoço e pepinos em conserva com pão preto no jantar. tudo era de uma monotonia muito doce. no almoço tinha limonada, no jantar, chá de mate com erva cidreira. aos domingos, bebíamos refrigerantes antarctica, guaraná, soda limonada ou água tônica. um caminhão fazia a entrega, e as garrafas era organizadas da adega, no porão da casa. no mesmo 'andar' da lavanderia, da garagem e de um quartinho onde ficava uma boneca de cabelos longos e loiros que nos metia medo.
os natais eram exatamente iguais. a comida, com peru e arroz à grega e salada de massa e purê de maçã e presunto, o pinheirinho que devia ter uns dois metros de altura, os chocolates pendurados na árvore, a porta de correr com vidro jateado que era aberta só depois do jantar, quando então os cinco netos corriam loucos em direção à arvore para procurar seus presentes.
fico me lembrando da minha vó e pensando em como alguém pode viver assim. na mesma casa, com o mesmo marido, as mesmas viagens. sem nunca ter pintado uma parede da casa de uma cor que não fosse o branco ou o bege. de ter vivido ao lado de um marido alemão 16 anos mais velho que ela e que exigia tudo. e nunca ter sentido tédio!
pois eu sinto tédio. e infelizmente não é por falta de movimento. mudei tantas vezes de emprego que estou completando minha segunda carteira de trabalho. vivi em quase vinte casas diferentes. morei em cinco cidades. já tive cabelos longos, médios, curtos e curtíssimos. já fui loira platinada, já tive mechas loiras falsas, fui ruiva e pintei o cabelo de castanho escuro. já pesei 15 kg a menos do que peso hoje e 20kg a mais. já pensei em mudar de profissão mil vezes, mas nunca consegui e agora desisti. já andei em todas as montanhas-russas que vi na frente, e hoje não entro numa nem que me paguem muito bem, e em euros.
e mesmo assim, a oma continua sendo minha fonte de inspiração. ela, que quando eu nasci tinha uma cara, e que quando a vi pela última vez, velhinha, com quase 90 anos, tinha a mesma cara, a mesma cor de cabelo, o mesmo penteado e as mesmas unhas pintadas de cor de rosa clarinho. que toda vez que eu acendia um cigarro, dizia 'que horror'. e que me deu de presente meu primeiro lençol de casal quando saí da casa dos meus pais.
talvez ela não soubesse, e agora eu não tenho como dizer isso, porque ela mora no céu, e eu na terra, mas é pra frente que se anda.
deus esteja.

Um comentário:

Anônimo disse...

A gente aprende tanto olhando pra trás (pro tempo e pra quem morava nele), né, Tita? Bjos, Ju